15.9.13

Maquiavel (texto final)


Não a publicarei integralmente, a apresentação que redigi para a edição de O Príncipe que a Editorial Presença publicou. Deixo aqui ficar o final, que se junta aos cinco excertos que aqui divulguei [e que podem ler-se aqui].
Escrevi tudo em 2008. O trabalho coroou um esforço de empenhamento no estudo da obra integral do "Secretário", incluindo os textos políticos, a poética, o teatro, a correspondência. Polémico, por trazer uma outra visão do biografado que não a odiosa comum, foi trabalho praticamente inútil: nem uma crítica, reparo, reprovação, sim, o desprezo do silêncio. Oficialmente este escrito nunca existiu.

[...] Está feita a apresentação da obra. Que me perdoem os especialistas a ousadia de pensar que este meu acto de atrevimento é uma tentativa de libertar o Florentino do cárcere a que o condenaram todos os que dele fazem instrumento de confirmação ou de infirmação das suas ideias apriorísticas.
Causa de facto viva impressão que um mesmo homem, sobretudo por causa de um mesmo livro, mereça qualificativos tão díspares entre si como se de um Anjo ou de um Demónio se falasse.
Maquiavel ainda hoje causa paixões.
São os que o reduzem ao que escreveu neste livro, contra os que exigem que se leia tudo o que há dele. Junto-me a estes, pois urge ler o Maquiavel republicano para que se entenda este tratadetto, rir com o Maquiavel obsceno de La Mandragola para compreender o poético autor dos sonetos de delicado enamoramento, descobrir o todo para entender a parte.
São os que vêem nesta obra um manual de instruções para tiranos, contra os que nela vêm um manual de sobrevivência para que os tiranizados sobrevivam à tirania. Não me juntei a nenhum deles, pois acho que O Príncipe foi apenas uma tentativa de mostrar aos que eram aquilo que tinham de ser, para continuarem a sê-lo.
São os que encontram aqui doutrina e ciência no campo da política contra os que só acham pragmatismo e oportunismo no mundo do governo. Percebi que Maquiavel escreveu este texto misturando um interesse a muita observação e rematou com uma proclamação; uma obra destas corre o risco de ir do zero ao infinito das categorias dos que vivem a dissecar pensadores à falta de pensarem sobre o que eles pensaram.
Niccolò Machiavelli é, sobretudo, mais diverso do que aqueles que, com estupidez militante, o reduzem ao homem unidimensional.
Primeiro, ele teve o condão de, através de toda a sua obra, desmascarar a política. Um jornalista brasileiro, ao escrever sobre a edição de um dos seus livros disse, com humor, que Maquiavel promoveu um verdadeiro strip-tease do modo de pensar na política, começando por tirar as luvas.
Segundo, ele teve a lucidez de mostrar como é que os políticos tiranizam também pelo marketing da sedução, essa violência doce sobre as inteligências. O nosso Padre António Vieira, que está livre do pecado de ser maquiavelista e tem a virtude de ter pensamentos que se aparentam aos do Florentino, escreveu: «na perda de uma batalha arrisca-se um exército, na perda da opinião arrisca-se um reino»[1].
Terceiro, ele deixou a cada um a sua moralidade, para que, mostrando a eficácia do mal, pudesse ter a nobreza de escolher o caminho dificultoso do bem. Tal como Vieira, a propósito de Dom João IV, ele poderia ter afirmado que um tal Rei «sabia reinar porque sabia dissimular; e reinou porque não dissimulou»[2].
Por fim, ele convocou, no final de O Príncipe, um chefe que desse à Nação dos italianos a sua unidade, à Pátria a sua mítica, ao Povo a sua vontade de viver, que conduzisse a Itália à República, através de uma política que não invocaria o Santo Nome de Deus em vão.
Maquiavel ousou enfrentar os que, reclamando-se a voz de Deus na terra, insultando com o seu comportamento pecaminoso os fundamentos do cristianismo, entendiam que era na moral cristã, que eles ofendiam diariamente, que se deveria encontrar o fundamento da legitimidade da política: o cristianismo era, para ele, um obstáculo, por ser uma moral decadente. Olhando em volta, vendo quem eram os Papas e como se comportavam – Roma veduta, fede perduta – entende-se bem porquê. Mas a Cúria romana não lho perdoaria, porque consenti-lo era abrir a porta ao cisma da Reforma.
Em 13 de Outubro de 1517 o monge Martinho Lutero afixou na Igreja de Wittenberg as suas 95 teses sobre a questão das indulgências, o modo como a Cúria romana encontrara de se financiar – nomeadamente para a construção da Basílica de São Pedro e pagar aos banqueiros Függer – através da remissão a dinheiro dos pecados inclusive dos mortos. Tal proclamação ateou como um rastilho. Denunciado embora pelos dominicanos como herético e excomungado pelo Papa Leão X, Lutero assistiria à disseminação das suas ideias, que traduziam a doutrina Protestante: o livre exame, o sacerdócio universal dos crentes, a simplicidade ritual do culto, a negação do livre-arbítrio, em nome de uma concepção pessimista sobre a natureza humana.
Niccolò Macchiavelli foi e é a totalidade que se pode conter na excelência de uma pessoa, a equação dos defeitos e das virtudes: conselheiro da crueza da guerra, diplomata ao serviço da paz, há na sua figuração conhecida um sorriso estranho[3], enigmático como o da Gioconda, a Mona Lisa, por antonomásia a mulher da Renascença, em torno da qual ainda hoje alinham hordas de curiosos, um sorriso de quem, através da ironia, se ri do mundo e do sofrimento que a vida consegue causar na sua perpétua renovação.
Quis trazer-vos um Homem e não um monstro, quis mostrar que há em Roma quem beatifica Savonarola depois de ter excomungado, enforcado e queimado Savonarola e hoje disfarça o crime condenando Maquiavel.
Quis – nestes tempos em que se desespera quanto à possibilidade de redenção da sociedade através do Estado – deter-me sobre este exemplo de realismo pessimista quanto ao Homem e de individualismo heróico em prol do ressurgimento da Pátria.
E porque de um Homem se trata, termino, com um Niccolò Machiavelli que na sua correspondência tem a fraqueza de confessar a sua fragilidade amorosa, mesmo o perder-se na luxúria sensual. Disse-o numa carta a Francesco Vettori, a 4 de Fevereiro de 1513:

«E porque vos assustais com o meu exemplo, lembrando o que me fizeram as setas do Amor,  sou obrigado a dizer-vos como me governei com  ele. Com efeito, deixei-o agir e segui-o por vales, bosques, penhascos e campos, e achei que me fez mais mimos do que se o tivesse maltratado. Por isso, tirai-lhe a albarda, tirai-lhe o freio, fechai os olhos e dizei: vai, Amor, guia-me, conduz-me; se for para meu bem, será para teu louvor; se for para meu mal, será para tua desonra: eu sou teu servo.»[4].

É o mundo de Dioniso, um Maquiavel em reiterado enamoramento, gozando a «alegria silenciosa» do amor, em arroubos líricos como quando, no seu Albergaccio, alternando a rude existência e a escrita deste livro, se apaixona por uma vizinha «una creatura tanto gentile, tanto delicata, tanto nobile e per natura e per accidente, che io non potrei laudarla né tanto amarla che la non meritasse piu»; ou, perdido o tino, liquefeito em vulgares obscenidades que na nossa literatura se chamariam vicentinas, escreve boçalidades de gargalhada plebeia, libertador diurético talvez das retenções da conveniência social.
Faltava-me isso para lhe compreender o enigma, sensual entre amorais pregando moralidades, virtuoso mestre na arte de defender a virtù, contraditório entre a dor e o riso, ambiguamente verdadeiro, enfim, humano, e porque profundamente apaixonado, demasiado humano. A sua vida resume-se numa frase do capítulo XVII deste livro: «quem não ganhar amor que evite o ódio». Ele perseguiu o Amor ideal, entre a cidade dos homens e o afago dos amores venais.
Conseguiu-o através da ironia do sorriso, rindo-se de si e de nós desdenhoso: contemporizou com a tirania que o perseguiu, foi desprezado pela nova República que quis servir. Incerto entre os homens, perdido entre as mulheres, morreu do menos poético modo, falhando-lhe os intestinos. Deixou aos filhos os restos da pobreza.
Um dos seus textos poéticos chama-se O Capítulo. Dividiu-o em partes, escreveu-o ao longo dos anos. Cada um desses tercetos tem um nome que é um tratado de filosofia condensado numa só frase: fortuna, ingratidão, ambição, ocasião. Cada ser humano revê-se ali, como a um espelho.
Ao contrário do que pensam os académicos, as grandes obras são mais o produto do sentimento do que do pensamento, a vida a escoar-se, «nervos, vida e História» em cada página.
Eis o Maquiavel que encontrei. Podia ser qualquer de nós. Em cada um dos homens contem-se a totalidade da Humanidade.


[1] Sermão pelo bom sucesso das nossas armas.
[2] A frase completa é um convite à leitura do Sermão Histórico e Panegírico dos anos da Rainha Dona Maria Francisca Isabel de Sabóia, de que faz parte: «Sabia reinar, porque sabia dissimular; e reinou, porque não dissimulou. Prezava-se só da justiça, afectava o nome de justiceiro, e era justo. Para os criminosos severo, para os pleiteantes igual, para os ministros senhor, para os vassalos pai, e para todos rei.»
[3] Viroli, na obra citada, constrói todo o seu registo em torno deste sorriso, «un sorriso di sfida, che muore sulle labbra senza avere il calore di attenuare la pena che serra il cuore» [página 131]
[4] Encontrei a carta traduzida no prefácio de Manuel Mendes à edição de 1945 de O Príncipe. Consultei a versão original, que cito. Registo aqui o modo como foi traduzida por Mendes: «Dizeis que estais assombrado de saber o que as flechas de Cupido me fizeram. Talvez vos deva explicar exactamente a minha política para com ele. Em suma, eu deixo-o livremente agir como entenda, sigo-o com docilidade por vales e montes, florestas e campos, e certifico-me, no final de contas, que ele me tratou muito melhor, do que teria feito se eu lhe tivesse resistido ou lutado com ele. Ainda o melhor é aliviá-lo de sela, de freio e de rédeas, fechar os olhos e dizer-lhe: “Vai, Amor, sê meu guia, conduz-me – o bem será a tua glória, o mal para o teu descrédito! Não passo de teu escravo”(…)».