22.11.08

Uma tragédia subjectiva

A minha geração vive a recta final da sua existência. Fomos nós aqueles para quem a vida foi matéria, o pensamento razão, o sentimento sensação, o real o cognoscível, o tempo um intervalo certo na dimensão do espaço. Fomos nós quem, por causa do naturalismo empurrámos tanto saber para a sociologia, por causa do positivismo tanto do anímico para a psicanálise, fomos nós quem sacámos do pragamtismo a amoralidade, do sensualismo fabricámos a forma hedonista de viver e inventámos a sociologia e a psicologia e todas as formas de nivelamento e catalogação do diferente e do surpreendente, reconduzindo o original ao curro da taxonomia, plantando a árvores dos conceitos onde estava o jardim dos enunciados.
A minha geração herdou os monstros da razão, filhos incestuosos da dialética perversa e seu relativismo ontológico e do aviltamento concentracionário do humanismo e fez deles formas mansas de governo e de domínio: fomos nós quem idolatrou o Estado que devora os seus filhos, cidadãos seus contribuintes, quem do egoísmo e do individualismo fez o dissolvente veneno do consumismo, que inutiliza a produção e abastarda o valor, gerando o lixo e o excesso, hipotecando o ser à usura do ter.
Foi no nosso tempo que o homem chegou à lua perdendo o mito lunar e se exilou nas estrelas alucinogénicas por ter tornado dejecta a terra que o viu nascer, transmutando o ouro do amor salvífico no ferro da guerra assassina.
Um outro mundo, porém, uma Atlântida florida, foi cultivada em discreto silêncio pelos poucos excelsos que souberam resistir ao nivelamento vil de tantos outros ninguém. Revelada pelos símbolos, astrolábios do saber esconso, encontra-se no labirinto da Criação pela fé gnóstica na necessidade de navegar. Nela o tempo gira em sentido retrógrado, a areia do seu relógio mal oculta as inscrições arquetípicas na lápida da Tradição.
Terra de mitos, de lendas e de cantares, em que o saber se alcança pela adivinhação, povoada de habitantes cuja inteligência sente e em que o coração pensa, nela morre a matemática do contável, por surgir, radiante, a poética do cantável.
Pensei hoje em tudo isso, porque o pensamento é real pluralidade do fragmentário e não a aparente unidade do sistemático.
Pensei nisso, nas doze estações da inteligência, porque, rendido ao sono, senti a proximidade daquele mundo «em que tudo é símbolo e analogia», em que «uma coisa nem parecida com a existência (vem) ocupar não o espaço, mas o modo como eu pensava o visível».
Viajei, com o Fausto, Uma tragédia subjectiva, do Fernando Pessoa. Quem descobrir a Verdade não pode sequer dizê-la nem tão pouco pensá-la. Ela é o indizível, o infinito para além do que ainda não começou. Regressei agora para vir escrever este silêncio.