26.9.08

O querer bem

Foi a aritmética quem liquidou a poesia, silenciando a música. Ao aprender a contar, o homem viciou-se no pecado de medir, perdeu a suprema graça da sua encantadora unidade. Em vez da indivisibilidade do ser, passámos à multiplicação das individualidades. Cada criatura é o que se adiciona, a vida feita de subtracções ao tempo que falta.
Depois ficou tudo imóvel, parou a música das esferas que é o contínuo em movimento. Descobriu-se o zero e com ele a posição relativa de cada um no corpo do número e com isso a ordem da sua grandeza. No infinito do firmamento contém-se a totalidade do firmamento e o sonho das estrelas que o vão gerando.
Inferiorizados, os portugueses tiram-se reciprocamente as medidas do seu exterior, anotando o total do que é visível. Ao avantajamento de bens sucede a soberba do intelecto. Há um dia em que a arrogância da maldade demonstra a exuberância de se querer bem. Reduzido à sua insignificância, o objecto do desejo cai afogado no mundo de todos os outros.

22.9.08

O pensamento inquieto

O que interessa num livro? Às vezes o que nele se escreve, outras as notas à margem com que alguém o glosou, quantas vezes a beleza da própria capa, o cuidado de tipografia, até a riqueza da encadernação.
Ora no caso desta tarde, feita da necessidade urgente de trabalhar na profissão e do cansaço mental a evitá-lo, parei por uns momentos, devolvido à liberdade tranquila, para uma visita à estante. Ali estava, impresso a mando da Editorial Império, sita na Rua do Salitre, em 1945, o Leonardo Coimbra, apontamentos de biografia e de bibliografia, escrito pelo Álvaro Ribeiro.
Tinha-o o lido e talvez o releia ainda hoje, quarenta e oito páginas em estilo límpido.
Mas o a propósito vem de uma nota, escrita na folha de guarda, ao lado do nome Leonardo Coimbra: «Leonardo Coimbra: um dos maiores pensadores de todos os tempos. Fundador do sistema filosófico intitulado creacionismo. Converteu-se à Religião Católica depois de longos anos de estudos filosóficos e científicos. Foi professor do Liceu de Gil Vicente na época de 1918-1919».
Mais: diz a nota que o livro é uma recordação do curso de Religião e Moral do ano lectivo de 1952-1953. O aluno, do 5º ano, turma B, chamava-se António José Nery de Oliveira.
Terminou tudo num alfarrabista. Recuperei-o, guardei-o, li-o, visitei-o esta tarde de inércia.
«Nunca o pensamento inquieto poderá desenhar uma figura rectilínea», escreve Álvaro Ribeiro sobre o autor de A Alegria, a Dor e a Graça. Talvez por isso os tropeções do espírito, as pernas do afecto a ensarilharem-se no intelecto.

A coincidência assombrosa

Reflexão nocturna! Quantas vezes o oculto se esconde no coincidente, assim se desconsidere o acaso e se tente ir à razão da máxima probabilidade. Pensado isto ontem, li esta manhã a resposta vinda do Aquém: «Pedro Martins parte de uma coincidência assombrosa: D. Dinis nasceu em 9 de Outubro de 1261; Álvaro Ribeiro, o filósofo desconhecido que se propõe desocultar, morre no mesmo dia, 9 de Outubro, mas 720 anos depois, em 1981. 720 anos exactos!». É um novo livro da editora Serra d'Ossa: O Céu e o Quadrante, Desocultação de Álvaro Ribeiro. É a legitimação do que aos dezanove anos intuí, abandonado pelo último dos Além's.

20.9.08

A dual negativa

É possível um filosofar de portugueses, que seja diferente só por ser oriundo dos nascidos em Portugal? Talvez não, apesar de terem uma língua comum, a fazer supor uma matriz unitária de pensamento, e já não se pode dizer que haja, a unir-nos, a Raça.
É possível um filosofar que seja sobre assuntos portugueses, que sejam diversos só por serem os que respeitam a Portugal? Talvez não, mau grado termos como Nação questões nossas e como Estado problemas que são próprios, e ainda haver quem acredite na Pátria que é una e indivisível.
Ora a questão reside precisamente no território definido por esse duplo talvez não, a dual negativa dubitativa.
É por causa da força mental da incerteza que se tem animado a razão a que se chamou de filosofia portuguesa. Escavam no modo de ser português, nessa antropologia do homem lusitano de que o espanhol é o além-fronteira, uma psicologia social que seja una e indistinta; escavam na tradição e seus arcanos os sinais de uma única antiga História da portugalidade.
É possível pois uma filosofia portuguesa. Ou melhor dito, existe, mesmo quando os portugueses não reconhecem Portugal.

15.9.08

Deus e o Diabo

O pricípio do terceiro excluído, o tertium non datur da filosofia aristotélica, tem seguramente que adaptar-se, como excepção, ao pensamento português. Escreveu Teixeira de Pascoaes «Deus e o Demónio são incompatíveis em toda a parte, excepto em Portugal». Está entendido? Não vale a pena insistir na tentativa de superar a exclusão. A filosofia portuguesa toda está contra, mesmo um anjo com asas.

14.9.08

O mirone do ajuntamento

Sabem todos os que com a filosofia portuguesa se ocupam e mais ainda os que com ela se preocupam, o que se passa.
Criei este blog para ir deixando por aqui apontamentos, leituras, notas soltas, provindas desse meu amor ao que Álvaro Ribeiro viu, e tantos outros sentiram: a possibilidade de uma filosofia portuguesa, reflexo anímico do modo de ser português. Saltito entre os nomes, os de Leonardo Coimbra, Orlando Vitorino, António Quadros, Pascoaes, José Marinho, Braz Teixeira, António Telo, muitos outros. Dalila Lello Pereira da Costa.
Apesar desta minha devoção tenho tentado ignorar o que se passa.
Tenho lido pouco, coleccionado livros para a estante, pensado quase nada, sentido sobretudo em silêncio. O blog ficou parado, asteróide morto na estratosfera, uma ideia sem substância, uma energia não corporizada.
O cansaço pressagia por vezes tempestade, tal como na Natureza quando uma súbita calmaria anuncia a chegada de uma trovoada.
Esta manhã enfrentei o que já sabia tinha acontecido. Fui à Leonardo ler e na carta aberta ao Jesué Pinharanda Gomes estava tudo. Choveu na minha alma.
Ser solitário, cada vez mais refugiado no ensimesmamento, sempre teria dificuldade em conviver com a multidão que se reuniu em torno da Nova Águia. Talvez nem queira ser mirone do ajuntamento.
Criatura a quem as lógicas de mando e domínio nada dizem, é impossível imaginar-me a filosofar a obediência ao Céu no areópago dos que querem o mando na Terra. Mesmo a ideia de dizer que filosofo é um dito que tem de vencer o pudor para me sair da boca.
Avesso à vozearia, incapaz de não me perder na algazarra da praça, lembro sim, com saudade,´a reconfortante ideia da tertúlia, o calor amigo da roda solta do café e das conversas desgarradas, não tê-las conhecido, sim por ter sido capaz de as viver, precisamente ao ler um texto do Pinharanda Gomes.
Talvez por isso, faça dó o que vejo. Ou talvez se deva olhar para tudo isto como uma das convulsões pelas quais a vida gera vida. No final, cada um ficará onde tem de ficar. Tudo menos as ilusões.
Ante isto, que fazer? Ruminar, talvez, fastios, regurgitar, sim, imprecações. Desejar um bom domingo ao Moraes Sarmento e quando chegar a casa ir lêr. Pausada e solitariamente, por nada, para que possa, enfim, ser por alguma razão.