23.10.05

Mundo de sofismas

Esgotada a demonstração racional «more geometrico», só a via caritativa da aquisição da verdade pela crença e pela confiança poderão salvar este mundo de sofismas. Chegados a este ponto de convicção, pergunto-me o que poderei considerar eu mais aqui. Atinjo os limites do irredutível, o do homem que, desconfiando na sua cabeça, se entrega aos ditames do seu coração. Perplexo como foi possível, não sei como continuar.

18.10.05

Um barba paradoxal

Se numa aldeia um barbeiro faz a barba a todos os que não fazem a própria barba, quem faz a barba ao barbeiro? Eu sei que é um paradoxo, mas lembrei-me dele ao dar conta que o barbeiro da minha rua tem um ajudante que um destes dias estava com a barba por fazer.

17.10.05

O esquadro

O esquadro tem esta coisa simbólica, o ser o símbolo da rectidão. Claro que muitos que o dizem e com isso se paramentam, são o contrário do que proclamam. Para esses resta o triângulo. Tem sobre ângulo, que o esquadro traça, a vantagem de ser fechado: não se perde o que se tem, não entram os que são de fora. Há quem viva disto e com isto prospere, mais do que simbolicamente, verdadeira e realmente.

16.10.05

Os sapatos e seus atacadores

Foi o Luís Sepúlveda quem disse, numa entrevista ao Mil Folhas que o desafio da Literatura não é apresentar as coisas de modo verosímil, mas sim credível. Ora aí está, nesse modo de demonstrar, o descaramento dos nossos dias: que importa a história verdadeira, quando a fábula convence? Eis o que pensa o amante nocturno, retornado a casa, madrugada alta, alma satisfeita, consciência pesada, os sapatos na mão!

14.10.05

Uma vida secante

Este blog diz ser «a história breve do homem que vivia à tangente». O problema é, como sucedeu nos últimos dias, o homem viver, não brevemente à tangente, mas longamente à secante. Fica em tal estado que nem coragem tem para vir aqui.

11.10.05

O equador

O norte magnético é a fatalidade dos que vivem no sul, a descoberta da latitude o sentido da distância. Nada mais existe no equador da vida.

9.10.05

A Mecânica dos Fluídos

O peso aparente de um corpo é a diferença entre a força da gravidade e o impulso que nele se exerce. Imagine-se o pobre humano, entre o impulso de acção e a força da inacção, o acordar preguiçoso num dia de deveres, o desejo de cama e a obrigação de secretária. Ao fim de um dia, tudo isso pesa, naturalmente. Só que, embora doa, como se explica na mecânica dos fluídos, é um peso simplesmente aparente; pior quando é positivo, porque então o corpo afunda-se, sem que nada afinal tenha meio de o sustentar.

8.10.05

Forma pura

A geometria é a mais pura forma de geografia; não trata de nada que exista na terra, nem da própria terra: trata de todas as terras possíveis, e do próprio céu.

7.10.05

O homem que nunca não

Hoje quem vier aqui não encontra nada. O zero não existe, eu sei, é um conceito útil ao sistema decimal. Passarei, por isso, a escrever em numeração romana: nasci em MCMXLIX, mas esse não foi o meu ano zero, foi o meu ano um. Por assim ser, nunca não existi e, com sorte, no ciclo vital da vida, talvez nunca deixe de existir. O que pode ser é que se esqueçam.

6.10.05

Intervalo

O intervalo é o que separa os sistemas contínuos dos outros, que se chamam discretos. Nestes quando o intervalo surge, é porque acabaram. Depois deles, é o nada.

5.10.05

Tiro e queda

Quando fui à inspecção militar pesava quarenta e oito quilos; talvez por isso foi-me atribuída a especialidade de armas pesadas de infantaria. Tudo aquilo girava em torno do cálculo de trajectórias de tiros, parábolas mortíferas projectadas nos céus. Totalmente ignorante e sem qualquer queda para a geometria, um dia, aplicando, a meu modo, a fórmula do livro ao tiro do morteiro, apontei a boca da arma para o que era suposto ser o alvo. Sem paciência para tipos da minha laia, o irascível tenente, comandante do nosso esfrangalhado pelotão, invectivou-me com um ó rapaz olha lá para onde estás a apontar. Estava de facto, para a janela do quarto do comandante, no quartel em Mafra. A guerra estava perdida.

4.10.05

O salto mortal

Bem me parecia que tinha saltado um dia sem vir aqui. É como naquelas demonstrações dos teoremas em que se percebe que na dedução falta uma linha. O resultado está certo só que à conta de se fazer de uma pirueta.

2.10.05

Estar

Com a mudança tinha-os carregado para o topo da estante. Para ir ter com eles, tinha de ir buscar o escadote que está na cozinha. Mas nem sempre apetece a um homem levantar-se para ir buscar um escadote. Ontem decidi-me e apeei-os. Ficaram ao alcance da mão. Eis-me com o volume quinto, onde ele encontra a frase eu sou quem está cá, esse modo popular de cada um dizer que é igual a si próprio. Ele, o Vergílio Ferreira, na sua Conta Corrente, primeira série. Cada um, os que ainda sabem quem são e que ainda estão.