30.9.05

À glória de ∏

Calcular a curva pela recta, o perímetro da circumferência pelo seu raio, desemboca no paradoxo aparente da quadratura do círculo: só o geómetra sabe, iniciado no mistério do número, como isso é possível. O número é imperfeito, o resultado exacto.

29.9.05

O limite do eu

Imagine-se um triângulo inscrito no interior de uma circunferência. Imagine-se o triângulo a converter-se, primeiro em quadrado, a seguir em pentágono, a seguir em hexágono, em heptágono e assim sucessivamente, ganhando cada vez mais lados. A regra é conhecida: à medida que o número de lados aumenta, o perímetro do polígono aproxima-se cada vez mais do perímetro do círculo no interior do qual se encontra. Qual o limite? Geometricamente, o único limite é o infinito. Assim se passa com os que se desdobram: um dia de infinito, chegaram ao seu limite.

28.9.05

Apanhando as canas

A propósito de um livro de poemas de Luís Adriano Carlos, Urbano Tavares Rodrigues escreveu, em recensão, que: «por detrás dessa pirotecnia semântica e versificatória, neoconceptista, há uma emoção que pensa, à maneira de Pessoa, mesmo quando através do exercício lúdico, das geometrias do poema, das glosas do verso dado». Claro que me ficaram os olhos na expressão plural «geometrias do poema», mas ficaram só até ter dado conta que Urbano, tratando a obra como algo de «muito alto preço», forma de dizer da sua valia, diz que ele «é um livro de poemas ultra-habilidoso», querendo dizer, afinal, que ele é um livro rebuscado. A partir daqui já nem comigo me entendo: geométrico, sim, pensante, às vezes, lúdico, quando posso, agora habilidoso! Nem pirotecnicamente falado, porque não ando atrás de foguetes.

26.9.05

O lar como ideia

Sentado à sua banqueta, sobre o estirador debruçado, fosforescentemente iluminado, há um labirinto humano a desenhar. Na precisão exacta do seu rabiscar, riscado e garatujado, existe, nessa aracnídea figura de rebuscada alma, a ilusão da forma na alucinação do conteúdo. Um dia, estúdio adentro, a ideia surge, como se ali entrasse sem bater. O homem gera projecto. Nómada da geometria, faz da casa alheia o esboço que ali a antecipa e no papel. São hoje riscos, amanhã um lar.

25.9.05

A ridícula demonstração

Não tinha vindo aqui hoje e seguramente não há nada que tenha para dizer. Perguntar-me-ia alguém que me lesse, porque vim então dizê-lo assim, como se expressamente. Precisamente por isso, respondo eu, sem ter sequer interlocutor que me ouça: foi-se embora, deixando-me a falar sozinho. Estava eu a explicar-me, ridículo como todos os que se explicam, e assim fiquei.

24.9.05

A esfera

Os deuses tiram quando dão. Li isto no Fernando Pessoa. E hoje, que é sábado e um vento frio ensarilha a cidade e afugenta os homens, senti o que é. Nesta esquina, perdido de bêbado, olhando-me indiferente, um homem fala uma língua incompreensível. Naquela janela de uma repartição pública, pálida, uma luz cinzenta, artificial, gelada de desolação acompanha alguém para quem o único desespero restante é o trabalho por fazer. O mundo perdeu forma e substância, esfera oca no vazio, povoada de nada.

22.9.05

Tratado da grandeza

No Livro I dos «Elementos» de Euclides vem, logo a abrir, a seguinte definição: «Ponto é o que não tem partes, ou o que não tem grandeza alguma». Talvez por isso haja uns tipos que são considerados como uns grandes pontos. São os que não têem grandeza alguma.

21.9.05

Equidistante

O facto de o triângulo equilátero ser equiângulo demonstra não só a beleza da igualdade exterior, mas sobretudo o conforto da proporcionalidade interior. No mais, encontrados dois deles, temos o mundo quadrado e quadrilátero.

19.9.05

O paradoxo dos afectos

Os leitores destes meus escritos, e alguns poucos haverá, julgarão encontrar aqui, em cada um, um sentimento de que gostem relativamente à geometria que detestaram. Se for assim, e assim talvez seja, terão descoberto por esta forma e neste lugar o paradoxo essencial dos afectos: o ter-se de encontrar o que amamos naquilo que detestamos.

18.9.05

Sem mudar a pena

E se eu escrevesse sobre a janela do abismo e a geometeria do ocaso? Na primeira sobre os suicidas da vida, os que vêem o mundo do alto e têm ânsias de profundidade? Na segunda sobre a contigência do espaço que acaba e a probabilidade do tempo que se vai, os que vivem a vida por baixo, soterrados de deveres. Tinha nisso pelo menos uma grande vantagem. Numa só penada arrumava dois blogs e numa só noite!

17.9.05

Lua

Para os que ainda assomem à janela e consigam olhar para o céu, hoje há uma lua convidativa, cheia, circular, concêntrica com o desejo, em trajecto angular à nossa noite.

16.9.05

A ânsia do fim

A ideia da geometria surge quando o homem projectou no espaço circundante o que, amarfanhado, lhe vinha atroando na cabeça. Revolvia ele imundo a terra, boi e humano agarrados a um arado, o acre do corpo suado misturando-se com a frescura dos campos esventrados. Cumpria-se, com o íntimo entardecer, mais um dia de labuta pelo pão. De súbito, eis a abóboda celeste envolvendo-o e como nela pregadas, as estrelas tacteantes. Anoitecera. Esgotado como animal de carga, o homem, vazio e sem vida, achou o incompreensível. Ante o infinito do firmamento, estendeu a linha recta da sua vida. Achara o primeiro conceito. Faltava-lhe o segundo, e ainda falta: o ponto final que ele não acha, e por isso teima em viver, na ânsia de o encontrar.

15.9.05

Raios e coriscos

Ensina a geometria que «radiano é a medida de um arco cujo comprimento é igual ao raio da circunferência». Ora como desde a escola primária se sabe, um arco é uma curva, o raio uma recta. Pensa o leigo motorizado, que as estradas às curvas são mais longas do que as vias em recta. Por causa disso, mete pela portagem, para chegar mais depressa. Claro que, geometricamente falando, se andar um radiano, anda o mesmo do que se andasse um raio. O que não há é raio de maneira de eu compreender isto e muito menos a esta hora! Por isso, até amanhã, que se faz tarde e eu ainda tenho muito que andar!

13.9.05

O ponto final

Um ponto fixo, estático. Dele nascem helicoidais, hipnóticas, em serpenteado movimento. Submerge-se para o interior. Os olhos fixos captam a ilusão: o que era algo, tornou-se em nada. O lugar por onde entramos é o vazio do que poderemos ser. Nasce, assim, a vida. Quando o ser submerge, evanescente, recomeçou, do lado de lá do espelho da realidade.

12.9.05

O bicho de conta

O Jorge de Sena, que era um obsessivo excessivo, fosforou num dia de 1964 a seguinte fórmula 5 px8 v+4 px12 v+5 px16 px17 v+7 px20 v+6 px24 v: 5+4+5+6+7+6. Resultou isto de ter dissecado, como se cadáver fora, a obra poética - imagine-se - do António Gedeão e ter observado que «em resumo geral dos três livros, os 90 poemas têm extensões que variam entre 4 a 108 versos por poema, e há, para eles, descontadas as coincidências extensivas, 45 extensões diferentes entre aqueles limites extremos». Só que, continuou Sena «segundo o quadro geral que, por muito vasto não transcrevemos aqui, 40 dos poemas têm extensões entre 8 versos e 24 versos, sendo perfeitamente excepcionais as extensões acima dos 80 versos, e abaixo de 8». Ou seja, remata Jorge: «como se depreenderá facilmente, apesar de o poeta experimentar dimensões tão diversas e numerosas, todavia ele se fixa, para 44% dos seus poemas, em extensões cujos valores extremos são aproximadamente a média dos limites mínimos dos três livros, para o valor mínimo, e metade do menor dos máximos, para o valor máximo». Quatro anos depois, o homem voltou à carga, com mais contas. Ora um tipo lê isto e sente ganas de andar aos murros, sacando o poeta agonizante à mão dos seus críticos e analistas, sobretudo amigos, sobretudo contadores. E não me digam que eu não gosto do Sena! Incapaz de sentimentos indiferentes, adoro em parte, odeio o resto.Tenho é amor ao Gedeão, em movimento perpétuo.

10.9.05

Operação clandestina

Há quem adicione a si, há quem subtraia aos outros. Há quem multiplique por muitos, há quem divida por poucos. Fiquei sempre desconfiado, desde a escola primária, que haveria uma outra qualquer operação, para além destas quatro. Não por olhar para a professora, mas por pensar nisso.

Um homem e um insecto

Quando eu era um miúdo e ainda em calções houve na minha rua trabalhos de terraplanagem. Entre o formigueiro nervoso de gente que ali acorria e a poeirada avermelhada que tudo aquilo levantava, surgiu um estranho personagem humano, alombando com mil cuidados um ainda mais estranho insecto. A esquisita criatura era algo pernalta, empinava-se em três pés, com joelhos metálicos que, atarrachados, lhe davam maior ou menor altura. Tudo aquilo era invulgar visto de longe. Aproximando-me, cauteloso, lobriguei-lhe a cabeça peculiar, esverdeada, canular, com dois olhos vítreos de gorda pupila azulácea, frontais. O mais insólito era, porém, aquele insistência do homem em mirar como se através dele. Colado à articulada criatura, espreitava, espreitava, tirando notas num papel sebento, escrevinhado a lápis. Um dia, deixou-me olhar. Lembro-me que eu era tão pequeno que ele teve de me soerguer, à força de braços. Exaltado, ante a alegria e o medo, dei uma rápida mirada. Veio então a estranheza. Via-se, de facto, através daquilo, mas afinal o mundo de pernas ao ar. Mais tarde soube-lhes o nome: o insecto chamava-se teodolito, o homem topógrafo. Às vezes dá-me saudades desse tempo em que, na minha rua, via o mundo às avessas. E eu que levei uma vida a tentar vê-lo direito, afinal para quê?

8.9.05

A lei angular

Aos vinte e três anos o António Gedeão escreveu o «poema da constância dos ângulos». Aconteceu-lhe no dia 26 de Setembro de 1929. Rematava assim: «Para uma certa temperatura, os ângulos entre faces semelhantes, em todos os cristais de análoga estrutura, têm valores concordantes». É assim entre diamantes, é asssim entre ametistas: concorda entre si só o que é análogo e semelhante. Como ele diz, ainda em verso, «são os valores dos ângulos achados, para as faces dos cristais considerados». Li-o, esta noite precisamente, ironicamente inconstante e prosaico.

7.9.05

0,1,2,3,4,5,6,7,8,9,10

Eu tinha quase a certeza de ter lido e logo esta noite dei comigo quase sem tempo para ir conferir. Mas roube-se ao sono o tempo que já se roubou ao descanso, depois de se ter ocupado em trabalho o tempo em que se devia ter jantado!. E lá fui. Com sorte descobri: «os números dígitos são dez, cada um com seu nome e nenhum o dez». Será inteligente a observação, mas genial mesmo é ter notado que dez é o total dos números que o antecedem. Ou seja, em suma, o dez em si é nada, tudo o que vem antes dele dá dez. Percebesse cada indivíduo que isto que vale para os números é verdade também para si e ganharia em humildade plural o que perderia em arrogância pessoal: eu não sou eu, mas apenas tudo o que está antes de mim. Ainda há quem despreze a aritmética, essa arte da subversão!

6.9.05

A meio caminho

Quando eu tinha quinze anos perguntavam-me «qual é o lugar geométrico dos pontos do espaço equidistantes das faces do diedro?» e eu tinha da responder, «o bisector do diedro». Hoje nem me lembro da pergunta, nem sei da resposta. E no entanto passaram-se quarenta anos de nada. Há quem diga que é a meia-idade. É um equívoco simpático para quem não vive cem anos. A própria noção de equidistância hoje dá-me imensa vontade de rir.

5.9.05

O infinitamente pequeno

O alongamento de uma recta até que se reduz a um ponto não é só a evidência do seu cansaço, é a premonição da sua ruptura. E, no entanto, por aí vamos desde o alfa que ignoramos ao ómega que tememos saber.

4.9.05

A fractura

Há concepções ideais que só demonstram uma coisa: que o real está em crise. Um mundo em deflagração, incerto, disperso, meramente provável, eis o que temos pela frente. A possibilidade de nem sequer existir não está suficientemente demonstrada. É essa a angústia do homem: o limite do seu saber é o horizonte do seu mundo.

3.9.05

Os equiparados

A frase «nunca discutas com um imbecil, pois as pessoas podem não notar a diferença», ilustra, de modo claro, em que medida a equiparação pode gerar a identidade. Sabem isso as pessoas que, tendo cão, ficam, ao fim de uns anos, a parecerem-se com ele e vice-versa, sobretudo quando vistos de frente.

2.9.05

O hexágono

A forma hexagonal dos favos das abelhas é um prodígio geométrico: têm lados iguais entre si, arrumam-se numa pirâmide lógica, implicam o gasto do mínimo de cera, permitem armazenar o máximo de mel. Fantástica racionalidade e sobretudo doce...

1.9.05

O mundo à medida

Muitos conhecem a frase «o homem é a medida de todas as coisas» e bastantes a atribuem certeiramente a Protágoras. O que já nem todos, sobretudo aqueles que nela intuem a proclamação de um entusiasmado antropocentrismo, é que a frase completa é: «o homem é a medida de todas as coisas, das coisas que são, enquanto são, das coisas que não são, enquanto não são». Assim, incluindo já o mundo por haver, o que não está e o que não há, eis a vida numa frase.