31.8.05

O prisioneiro

Na sua novela «O Problema Final», Arthur Connan Doyle faz Sherlock Holmes despenhar-se no abismo. Mata-o assim, para tristeza dos seus leitores. O precipício era escarpado, geometricamente irregular. Talvez por causa disso, teve de passar pela vergonha de o ressuscitar. Estava o autor prisioneiro de quem o lia.

29.8.05

A compreensão

Não, não tem dúvida: eu ignoro a aritmética dos valores concretos e nada sei da álgebra das variáveis possíveis. Na minha geometria falho nos corolários, vivo de postulados, raramente arrisco um teorema. Esforço-me é por demonstrar a validade das asserções pela congruência do seu enunciado. Vivendo entre papéis, equiparei o ilógico ao falso até ao dia em que, olhando em volta, descobri que o absurdo tem um sentido. A isso se chama a compreensão.

28.8.05

O icoságono

A coincidência dos extremos é o que define o polígono. Claro que frequentemente ele é multi-facetado, sendo cada vez maiores os seus ângulos internos. Tomemos o icoságono, o polígono de vinte lados. Surpreende-nos pelo seu variado exterior, mas uma vez mais, os extremos das linhas poligonais coincidem, como se afinal, numa circunferência. É por isso que a todos eles, por mais irregulares que sejam esses polígonos, se aplica sempre o teorema pelo qual a soma dos seus ângulos externos é igual a quatro rectos. Tal como na circunferência, afinal, uma vez mais, ali estão os trezentos e sessenta graus, a unidade de medida do sistema hexadecimal.

27.8.05

Sonhos de uma noite de Verão

O homem que se sentasse no quarto minguante da lua, sem se aperceber, correria o risco de cair, pois lentamente o arco que lhe dava assento, diminuía de espessura, até chegar ao nada absoluto. Uma semana depois, a lua nova traria o seu fim. É por isso que as pessoas argutas se sentam, baloiçando a perna, tal como o Peter Pan, no arco do quarto crescente. Não sabem é que a lua cheia os deglute mais à sua esperteza. Conselho pois para os sonhadores, este Verão: nem te deites ao sol, nem te sentes na lua. O ministério da Saúde recomenda.

26.8.05

Lado a lado

Hoje descobri que é sexta-feira e que o fim do mês se aproxima vertiginosamente. É esse o problema da métrica do tempo que o calendário efectua e a agenda exaspera. O viajante de comboio sente o mesmo, tal como a solitária figura que na plataforma da estação o espera. Reencontrados, enfim, seguem tristonhos, lado a lado, carregados de futuro e cansados de passado, uma mala atulhada de inutilidades, a separá-los. Pesada, inexorável no seu horário, a locomotiva da vida, segue indiferente, de acordo com o horário. O cais fica então vazio de ilusões.

25.8.05

A corda bamba

Por definição uma recta não tem espessura. Mais do que um conceito incorpóreo, ela é, como para o trapezista, o risco contínuo da queda.Uma variação imperceptível de humor e já estamos no chão.

24.8.05

O encadeado dos afectos

Na altura vinha a propósito da conversa. Falei na cadeia do agrimensor. Olharam-me atónitos. E, no entanto, foi com ela que, acocorado, eu medi a minha sala de aula, há mais de quarenta anos. São elos metálicos de 20 centímetros cada, unidos entre si por argolas. Usam-na os que medem terrenos, os ditos agrimensores. Na minha escola havia uma, guardada no armário, numa escola em Cabo Verde também. Eram aí «quatro fiadas de velhas carteiras de tampos furados pelos bichos da madeira e com um buraco para um tinteiro de esmalte estalado pelo tempo, cheio de fedorentas moscas mortas e tinta azul, líquido precioso que a professora retirava de uma garrafa, guardada cuidadosamente num armário onde estavam também o compasso, o giz, alguns mapas enrolados, a colecção das medidas, a cadeia do agrimensor, etc... Irene, assim se chamava a professora primária. Já faleceu, claro está! Paz à sua boa alma. Usava óculos de aros de tartaruga, era baixa, de rosto arredondado de aspecto agradável. Cândida figura. Foi ela quem me veio receber. A porta desengonçada estava pintada de um cinzento já estalado pelo tempo e sustida no local com auxílio de uma pedra, polida pelas mãos de várias gerações de meninos como eu». Obrigado Eduardo Gominho, pela companhia. Não nos conhecemos, mas há uma cadeia invisível que nos une, a da humanidade e a do agrimensor.

23.8.05

Aproximadamente

Há quem meça a palmo, há quem não tenha mãos a medir. Não são medidas exactas, mas dão uma ideia da dimensão.

22.8.05

O vexame da forma

Marco aqui, estaca acolá, o aldeão marcou as extremas da sua courela. Estendido um fio, era tudo um figura irregular, terreno delineado aos ângulos, propriedade recortada entre outras igualmente disformes, nada como os hectares rectangulares dos grandes agrários. E, no entanto, a terra é redonda. Depois da ceia, o homem sentou-se a cismar nisso. Nas altas esferas do céu, uma lua circular dava a luz que se via. Era a geometria rústica dos pobres, medida a palmo e aos socalcos. Nessa noite o aldeão, vexado, pensou em emigrar.

21.8.05

A excepção do improvável

A ideia de que, cortando um cone às fatias, segmentando-o em planos paralelos, se obtêm círculos cada vez mais pequenos, até que no fim, já no vértice, o que se corta é menos do que um ponto, é afinal o próprio nada, é abstractamente verdadeiramente e realmente impossível. Ao ser prático repugna o nada, se bem que para o matemático o zero faça sentido. E, no entanto, fatiado o frango de churassco, lasca a lasca, há sempre um que come a última, há sempre outro para quem já não há mais. O que legitima, enfm, uma conclusão epistemológica universal: as asserções verdadeiras, logicamente congruentes, ontologicamente improváveis, conhecem uma excepção: o frango de churrasco. O que hoje, domingo de praia, não é má ideia para o almoço. E com batatas fritas.

20.8.05

A estranha cinética do ridículo

Há uma geometria dos sentimentos tristes, feita por seres aracnídeos que transportam às costas desengonçados maquinismos, ridículos pela aparência, absurdos pela inutilidade. Equilibram-se como trapezistas de circos de miséria. Calcinados, carcaças ressequidas no deserto dos seres, correm embriagados de aceleração. Nenhuma lógica demonstra o não se desmoronarem. Enquanto correrem, sem sentido nem destino, iludem-se no adiar da queda.

19.8.05

O soma e segue

Há na ideia da geometria a mesma malignidade que na matemática de que ela é a expressão espacial: sempre a ambição do medir e do contar, o imperativo das contas e dos resultados. O reino da quantidade é a servidão do homem, a aritmética o seu pecado original. Quando pela primeira vez o humano descobriu as equações, esfrangalhou-se na ânsia de encontrar igualdades. Esquecida a magnífica diversidade, a beleza do único, o milagre do excepcional, tudos coisas que com a Natureza se aprendem, o homem julgou ter encontrado uma ciência. Hoje, acorda ao som de despertador, corre vergado a horários, subtrai-se ao ritmo dos extractos bancários, multiplica-se no que compra, diminui-se no que não tem. A sua tragédia é a prova dos nove, noves fora, nada! No mais, é um animal algébrico e tristonho.

18.8.05

O tempo da incerteza

Um qualquer que tentasse demonstrar a validade das suas asserções geométricas na areia húmida na praia, teria o lugar convidativo ideal para proclamar a sua certeza, mas faltar-lhe-ia o tempo suficiente para que ela perdurasse: uma onda, das muitas que se formam nessa regularidade contínua das marés, desfazer-lhe-ia, gargalhante de espuma, a soberba da convicção.

17.8.05

O visível ilusório

A expressão da geometria na arte começa ao nível atómico. A concentração de pontos exprime uma imagem. Percebe-o quem amplifica uma fotografia e descobre que essa imagem mais não é, afinal, mais do que uma sucessão de pontos, em branco e em negro. Sabe-o também os que estão familiarizados com a métrica da aferição da resolução de uma gravura, a qual se mede em dpis, seja em pontos por polegada. O que poucos conseguem alcançar é a simbólica dessa linguagem digital, de dois únicos valores, o um que é dado pelo negro, o zero que equivale ao branco. Uma álgebra dessas, como Leibnitz a inventou, daria para reduzir o mundo visível a números computáveis. O paradoxo dessa matemática nasce então. A multiplicação de pontos exprimem uma imagem. A multiplicação do um pelo zero, essa, dá em nada. Haverá melhor demonstração lógica de que tudo quanto se vê, afinal, não inexiste?

16.8.05

O homem unidimensional

Houve um momento em que o homem sentiu a necessidade de uma geometria dos espaços curvos. Tinha compreendido os limites de um mundo projectado em superfícies planas, tal como os pintores medievais o pintavam e nele as esquálidas Virgens, em telas a uma só dimensão. Mas não era só esta exigência intelectual de um humano ansioso por desenhar o mundo tal como viam os seus olhos. O anseio pelas formas redondas é a ânsia pelo feminino, as saudades eternas do útero materno onde cada um nasceu; é o medo da linearidade do mundo exterior; a repugnância pelo que é unidemensional e sem volume. Num mundo desses, é a curva e não a recta a mais curta distância entre dois pontos. Leva-se mais tempo na viagem, mas vai-se mais feliz à janela do veículo que a permite. Se o geómetra da circunferência acenasse ao geómetra da esfera, no cais da estação onde este nem sequer se apeasse, diria, melancólico de monotonia: posso estar redondamente enganado, mas aquele, sim, é feliz!

15.8.05

O homempoliédrico

Foi no José Cardoso Pires que eu aprendi que o Casanova seria o geómetra das paixões. Naquele tempo da geometria euclidiana, o homem só poderia ter sido um poliedro: não pela pluralidade de mulheres, mas pela face que dava a cada uma.

14.8.05

Logo inexisto

Eu fui buscar a frase «Geometria do Abismo» ao «Livro do Desassossego» do Fernando Pessoa, o que é aliás perfeitamente compreensível, menos para aqueles que, reduzindo o estilo geométrico ao pobre do Descartes o emparedaram vivo no catre do racional. Claro que quando o foram lá buscar estava morto, como um corolário de si.

O postulante geómetra

São tão indispensáveis à geometria os postulados que há quem os confunda com os axiomas. Ora os axiomas são aquelas supostas verdades que não carecem de demonstração, como se tal coisa existisse! Enquanto os postulados, como se percebe pela etimologia da palavra, são asserções que pedimos sejam aceites, até mais vêr. Ora entre a arrogância de um axioma e a humildade de um postulado, pode lá haver semelhança ou sequer proximidade, até mais vêr?

O não saber como ciência

Será que não se entende nada do que eu aqui escrevo? Claro que não para quem ler a correr, ainda no tropel com que se vive a vida, do mesmo modo que um passageiro da janela do comboio vê os campos circundantes no olha ali-onde-já foi. Mas há também aquela questão, quando perguntaram ao Santo Agostinho o que era o tempo e ele deu a resposta que ficou como uma paradigma quanto à inutilidade explicativa do perguntar: se não me perguntas sei, mas se me perguntas, já não sei. Mal comparado é assim. Não me perguntem pois o que digo aqui: não sei!

13.8.05

Todos por um

Há uma geometria da esperança e da diversidade. Demonstra-se assim, seguindo-se com os olhos fechados, como os que querem melhor ouvir. Para que dois planos sejam concorrentes, é necessário que tenham um qualquer ponto em comum. Mas deste postulado decorre um outro, o de que se dois planos têm um ponto comum, eles têm necessariamente um segundo ponto comum. Ora ele há o teorema segundo qual a intersecção de dois planos secantes é uma linha recta, do qual resulta o corolário de que existe, afinal, uma infinidade de planos que passam por essa linha recta. Assim em conclusão, pelo mais insignificante ponto passa então a possibilidade lógica da multidão de planos distintos e diferenciados. Tal como por esta rua em que escrevo, a janela aberta. É isto a vida: no um se conter, afinal, a possibilidade de todos.

A via intersticial

Creio ter descoberto a via intersticial: transmutar a acção em ideia, privando-a da substância que lhe dá corpo. Dá primeiro em côncavo o que é convexo, por aí se escoando, goticulando, o mundo circundante. Deixemos pois os espaços planos e suas deformações. Circum-navegue-se assim o mundo do interior e seus jardins aquáticos, inebriantes.

O dia aos oitavos

A ideia de que três horas se expressam num extenso segmento de recta circular, iniciado e terminado no relógio de ponto, é a obsessão lamentável dos que cumprem horários por conta de outros, das «gentes que tendes patrões, autómatos do dono a funcionar barato». Visto daqui, do meu relógio burguês, corrente dourada «oiro de pechisbeque», é um ângulo, exacto e de noventa graus. Para uns e para outros, tudo se resume numa circunferência. No meu caso, porém, trago-a comigo no bolso do colete afundada, símbolo desse tempo portátil, a versão moderna do relógio de sol.

12.8.05

O lugar da intersecção

Entendo enfim, ao pensar na intersecção de duas rectas, que mútuamente se interrompem, o conceito do que seja o ponto. É aí, no cruzamento de ambas as linhas, no lugar único em que as duas reciprocamente cedem passagem, que se define a unidade central de toda a minha geometria. Eis a simbólica do ponto, o produto da tolerância, a demonstração de que cada caminho permite o outro, a abdicção de ambos permite a solidez de uma edificação. Construamos, pois. Temos o que precisamos. Dêem-me um ponto de apoio e eu soerguerei o mundo. Talvez Arquimedes o tenha dito. Eu conseguirei demonstrá-lo.

Primeiro, o ponto

O ponto é a unidade imaterial do espaço, entidade invisível enquanto abstracta, o sinal da interrupção. Por aqui começo, delineando, no espaço do que não se vê, aquilo que não se concretiza. Fica-me apenas, irresolúvel, o problema da interrupção. Sim eu sei pela gramática que assim é. E por ela sei também quanto há de ambíguo no ponto e vírgula, de irremediável no ponto final parágrafo. Mas agora, nesta noite em que me inicio, lançando os olhos aos céus, não entendo só porque, nas trevas da ignorância, não vejo. Mas leio, o livro aberto ante mim, os olhos já cansados: o sinal da interrupção.